terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Seu Fabrício Gomes, ★ 11/02/1939 ✟15/01/2012

Sexta, 13 de Janeiro, 2012.
Acordei no horário, saí atrasada. Cheguei no trabalho, fiz o que tinha que fazer, tive febre - assim, de repente- e resolvi ir pra casa. Ligo pra mãe, ela diz que o vô não está bem e que decidiram ir pra Caçador no sábado de manhã. Com a cabeça latejando, tomo banho e arrumo a mala, saio de casa toda atrapalhada, esquecendo alguma coisa. Chego na mãe, ela está agitada, a Ana está com ela e decide viajar com a gente. Minha irmã tem um excesso de preocupação que beira a loucura. Ela é do tipo de pessoa que quando quer ajudar, atrapalha; por incrível que pareça, isso a deixa ainda mais bonita. Noite agitada, ninguém dorme, mas finje.

Sábado, 14 de Janeiro, 2012.
Abro os olhos, é 7 da manhã, lembro que vamos sair as 8:00 e fico me enrolando. Não viajava com a minha irmã fazia uns 6 anos, tava empolgada com isso. Não consegui comer, e a chuva me fez ficar ainda mais aflita. Saímos por volta das 8:30, o ex mandou mensagem me convindando pra almoçar, agradeci o convite e disse que estávamos indo pra SC porque o vô estava mal. Ele quis estar junto, achei bonito. A chuva não parava e isso fez com que o trânsito estivesse bem lento na entrada de Mafra, e na serra teve alagamento, o que pra mim tornou a viagem mais divertida, isso porque papai tem uma L200 que é alta e passa toda serelepe por lugares alagados. (e agora, quem tem pôneis malditos?)
Demoramos uns 40 minutos a mais que o comum, chegamos na chácara da tia Nega era 13:30+-, tinha tanta gente em frente à casa que era até estranho. Tios, primos, amigos da família... Fiquei tão desnorteada com isso, me pareceu ruim que todos estivessem lá, sem ter combinado. Abraço um, beijo outro, peço bença pros mais velhos, conheço filho da prima, descubro quem tá namorando, quem tá grávida, (com essa, seremos em 39 entre netos e bisnetos) me desvencilho das pessoas e vou ver o vô. Entro no quarto, mãe-pai-tias-enana em volta da cama, como se estivessem velando um vivo, falando baixinho, sei lá. Vozinho mais amarelo que eu, só pele e osso. Nada de carne nas bochecas, as costelas "aparecendo",sono pesado, acho que por causa da morfina. Pego na mão dele: "vôzinho, é a rô, acorda pra me dá a bença". Ele mal mexe a mão. Saio lá fora (aé?!) e fico meio boba com a chácara; tudo tão bonito.  A égua "cestroza" tava encilhada, mas não me animei pra montar. Meu gato grudou em mim, e arranhava e se arrepiava pra quem chegava perto, achei bonito, achei graça. Meu sobrinho e meus primos menores corriam por tudo, cutucavam a terra, jogavam pedra nas vacas, enfiavam a mão na boca dos terneiros, chapinhavam nas poças de lama. Achei lindo, pareciam 4 indiozinhos. Os primos maiores conversavam com os tios, falando baixo, sem muita risada, sem um copo de canha na mão, sem piadas. Bem incomum pra uma família catarina criada em boteco.
Queria ficar um pouco sozinha com o vô mas as tias não saiam do quarto, me enfezei e sentei na cama com ele, lado esquerdo da cabeceira, balançando a cama, cutucando o vô, falando as bobagens que eu sabia que ele gostava de ouvir, toda espivetada como sempre. Ele me deu a mão, resmungou alguma coisa. A respiração dele já estava pesada. As tias com cara de choro não entenderam direito porque eu era a única neta que não desgrudava dele, que insistia em ser respondida, só a mãe e a tia Nega entenderam. Meu laço com o vô era de cumplicidade, acima de qualquer coisa. Era ele quem me contava segredos, e histórias sobre como se deve amar.
"Já faz uma semana que o pai não come nada, só consegue tomar aquela sustagem." "Será que a gente interna?" "Será que adianta?" Decidiram que não adiantava, mas que também não dava pra deixar ele ali. Troca a roupa do vô-chama bombeiro-decide quem vai junto-decide quem vai de carro. Ok. Fomos em 7 pro hospital. Papai segue a ambulância porque não conhece o caminho, o trajeto faz o vô vomitar. Avaliação médica, internação. Chega mais uma das tias no hospital. Ah, são 8 tias e 3 tios. Mano e papai decidem ir atras de funerária, porque a situação é tensa. Escolhem plano, caixão, flores, e o velhinho lá, firme e forte feito palanque em banhado. Como a casa da tia já estava cheia, eu e minha enana dormimos na casa da sogra do meu irmão, que é no centro, mais perto do hospital.

Domingo, 15 de Janeiro de 2012.
Pouco mais de meia noite, todos agitados, o mano decide-com todos os tios- ir ao hospital. O médico libera a visita, nessa hora todos entendem que não há mais o que ser feito, afinal, por qual outro motivo o médico liberaria a entrada de visitantes sem regras? Todos voltam pra casa, ninguém dorme. Minha irmã tenta me fazer "tomar um floralzinho", mas preferi estar acordada para ajudar (no quê?) se fosse necessário. De manhã, lá pelas 7:00 meus irmãos vão pro hospital, voltam lá pela dez e quem vai com o mano sou eu. A mesma cena, a agitação, a apreensão. Da calçada assovio pra janela do quarto, papai me chama de maloqueira e desce pra eu subir. Entro no quarto, vejo o vô no oxigênio, respiração pesada, rosto cadavérico. A mãe chacoalha ele e diz: "pai,a Rosemary está aqui, veio ver o senhor." Ele suspira, escorre uma lágrima do olho dele,e eu tenho certeza de que ele sabe que eu estou lá. Não consigo ficar nem 5 minutos no quarto. São 11:05 e as enfermeiras servem o almoço. Tentam passar a sonda pra que ele se alimente, mas a garganta já está fechada e desistem. As tias decidem almoçar, e ficamos só eu e o Andi (primo) sentados na frente do hospital, e a Tia Maria e o Tio Loi no quarto. O Tio é bem branco, de olho bem azul. Nem parece que é meu tio. A Maria é esposa dele.
Lá por 13:30 decido que quero subir no quarto de novo, meu primo diz que quer ir também, mas que tem medo que o vô morra enquanto ele estiver lá. Aí ele diz: "se você for, eu vou". Acho tanta graça... e isso me lembra que não importa quão adulto e pai de família você seja, entre primos, se é sempre criança. Mais um assovio na janela, peço pro tio descer e subo. No quarto um senhor de quase 2m de altura, sentado na cadeira ao lado da cama, conversando com a tia, com um chapéuzinho branco enterrado na cabeça, diz que é amigo do vô, o Seu Panela. Ele pergunta pro vô se ele está bem, e com todo esforço do mundo o vozinho responde: "tudo." Como a respiração do vô não está mais tão forçada, consigo passar meia hora no quarto, mas aí chega um médico e coloca um comprimido na boca do vô, e esse tirar do oxigênio por 30s faz o corpo do vô tremer todo. Olho no relógio e são 14:15, não aguento mais ficar no quarto e desço. Todas as tias e as primas haviam voltado. Sobe um monte de gente de uma vez. Alguém lembra que eu não comi nada -em dois dias- e me manda almoçar. É, eu não vou, mas aceito um picolé.
As tias falam sobre as cores do meu cabelo e ensino alguém a fazer trança embutida. Sinto a hora passando e fico aflita. Decido trocar de lugar com a mãe e ficar no quarto com o vô, papai dormia no carro, mano tinha levado a tia Nega pra tomar um calmante. Da calçada assovio pra janela. Nada. Dois minutos, outro assovio. Nada. Gelada.  Um terceiro assovio e a mãe aparece na janela, rosto vermelho. Me olha e faz o sinal de negativo. Pergunto: "morreu?", as tias todas levantam e olham pra janela, ela sai, depois de um minuto ou uma eternidade-ainda não sei- ela volta e diz que o médico confirmou. Minha irmã acha que eu vou desmaiar e me segura, mas eu rosno pra ela me soltar. Rosno pra um monte de gente que tenta me abraçar. Pego o celular e ligo pro meu irmão, penso em dizer: "Cris, aconteceu, o vô faleceu" mas digo: "cris, o vô morreu", e desligo o celular sem entender o que ele respondeu. Vou avisar o pai, mas ele já está vindo e só consigo dizer: "morreu." Sento no chão e choro, meio gritando, me contaram depois. Mando mensagem pra alguns amigos. Entro no hospital pra lavar o rosto, ou pra chorar abafando o som com a toalha, sei lá. Sentei com o pai, ele veio falar sobre descansar e ressurreição, pensei que ressurreição sempre me lembra zumbis, e respondi com "eu sei."
O mano foi criado pelo vô,e tentava não aparentar, mas estava em choque. Já que ele não conseguia, fui com o pai na funerária. Decide tudo, paga o que foi comprado de presente pro defunto.
Casa, banho, como algo que obviamente cai mal, visto a camiseta do meu sobrinho e vamos pro velório. Que coisa ingrata é velório. Fico indignada de ver minhas prima de barriga de fora, uma delas de shortinho curto, os meninos de cueca de fora e boné. Seguro na mão do vô quando só meus 2 primos favoritos estão em roda do caixão. Olho pro vô e digo: "Levanta daí, pega a bengala e toque tudo essa netarada que tá chorando e cutucando o senhor", os primos riram, pq o vô adorava bater na gente com a bengala. Já tava bonito meu velhinho. Terninho cinza, camisa clara, grava de listra. Se ele tivesse se visto, teria dito que estava "virado num guri novo". É, ele tava bonito. Arrumaram a bochecha dele pra não parecer tão magro. A barba bem feitinha, o cabelo aparado e a carinha de ator de filme mexicano. Senti falta do olhão verde dele. Senti falta também de ver o vô piunchado. Ele se achava o cara quando usava bombacha, guaiaca e chápeu. Tio João e Tio Bininho(irmãos do vô) foram a caráter, e invés de chorar, contaram causo a noite toda. Tio João é farrista que nem o vô era, e Tio Bininho é tão alto que se andar com uma 38 cano longo na cintura, arrasta. Gostei de conhê-los, mas faltou o Tio Lício, que não conseguiram avisar. Tia Mariquinha tava tão bonitinha, cabelo arrumadinho, sorrisinho no rosto. Aquele sorriso leve que só gente velha consegue ter quando encara a morte. Senti falta do Tio Valentim, aí lembrei que ele morreu faz 2 anos.

Segunda, 16 de janeiro de 2012.
Reparei que metade dos meus parentes é mau encarado. A outra metade finge que não é. PAUSA PARA ANEDOTA DO PAI: "Seu Fabrício já era ligeiro. A morte rondou o quarto e perguntou quem era Fabrício, ele apontou o velhinho da cama ao lado. Foi. A morte viu o engano e voltou, ele apontou o outro velhinho. Foi quando sobrou só ele no quarto que a morte consegiu levar, e ainda na briga." Sim, morreram as outras duas pessoas do quarto antes dele.
Era 12:30 e não chamaram padre, meu pai fez um discurso. Achei besta. Eu queria a missa, vô era católico. Mas meus pais conseguem ser influentes... Senti falta. NADA mais consistente, amável e reconfortante que um Pai Nosso seguido de uma Ave Maria. Devoto de São Jorge era o vô. Ia pro terrreiro também. Me chamava de filha de Iansã, mas só quando a mãe não tava olhando, pq ela ficava brava. Dizia que eu era espoleta de mais, por isso era filha de Iansã. Foi ele que me ensinou que São Jorge e Ogum eram a mesma pessoa. Também foi ele que me ensinou que mulher tem que ser gorda pra ser bonita. Na cabeça dele eu era doente, pq era "magra de mais".

Terça, 17 de Janeiro. 2012. Meu aniversário.
São 3:39 e eu estou com uma folha de sulfite e um lápis escrevendo isso, pensando em como vai ser chato passar isso pro pc.
Triste? Não, eu não tô triste.
Eu tô puta da cara, tô com raiva, tô brava, tô rosando pro mundo, tô me sentindo órfã. Ele era meu único avô, eu não tinha avós. Ele era meu amigo, meu vôzinho, o cara que tinha um boteco, o cara que comprava carne de porco pq sabia que eu adorava. O cara que ria das minhas piadas, que não cansava de contar da vez que eu passei a noite cuidando dele. O cara que me dava a benção mais engraçada do mundo: "filha, Deus que te abençõe que você arranje um marido bem lindo e tenha filho subindo pela cunheira da casa". A única neta morena sou eu. Me chamava de bugrinha as vezes, de negrinha também. Tô com raiva pq ele bebeu, fumou e fodeu a vida toda, e aí qndo ele precisava ter um pouco de saúde pra aguentar um tratamento, ele não tinha. Viveu os dois anos de cancêr, pq não desistia mesmo. Vaso ruim.
Agora são 18:55 e estou tendo o aniversário mais quieto da minha vida. Nem consigo responder quem me parabeniza, e se pá, desculpem por isso.
Fiz 23 anos. Ainda estou com raiva. Ainda me sinto órfã. Ainda quero colo. Ainda quero dividir aquela cuia de mate. Ainda quero correr pela sala pendurada nas muletas do vô e estorvando o Dunho, só pro ver o vô dando risada.

2 comentários:

  1. me fez chorar. meus pêsames, minha baixinha.

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  2. Que merda guria! Não sei mais o que dizer além de que lembro de vc falando de ser filha de Iansã... Só não lembro o contexto...
    Meus pêsames. Bjo, tepha.

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